A expectativa em torno da criação de um exame nacional para médicos recém-formados ganhou um novo capítulo nesta quarta-feira (9). A Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado Federal decidiu adiar a votação do Projeto de Lei nº 2.294/2024 — proposta que institui o chamado Exame Nacional de Proficiência em Medicina, popularmente apelidado de “OAB da Medicina”. O exame, se aprovado, passaria a ser um requisito obrigatório para o exercício da profissão médica no Brasil, em moldes semelhantes ao Exame da Ordem dos Advogados.
A proposta seria analisada em caráter terminativo, ou seja, com força de decisão final no âmbito da comissão. No entanto, um requerimento apresentado pelas senadoras Tereza Leitão (PT-PE) e Zenaide Maia (PSD-RN) mudou o rumo do debate. As parlamentares solicitaram a realização de uma audiência pública para aprofundar a discussão, alertando para possíveis implicações da medida — como o risco de invasão de competência do Ministério da Educação e a ausência de previsão de custos para implementação do exame.
O pedido foi acolhido após votação na CAS e prevê a participação de representantes de instituições-chave para a formação e regulação da atividade médica no Brasil, incluindo o MEC, o INEP, o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina, além de entidades estudantis como a DENEM e a UNE. Com a aprovação do requerimento, a tramitação do projeto fica suspensa até a realização da audiência, cuja data ainda será definida.
O que é o PL 2.294/2024
A expressão “OAB dos Médicos” surgiu de forma espontânea na imprensa e entre os profissionais da saúde para se referir ao Exame Nacional de Proficiência em Medicina (ENPM), uma proposta legislativa que busca instituir um exame obrigatório para o exercício da Medicina no Brasil, nos moldes do Exame de Ordem exigido dos bacharéis em Direito.
O projeto de lei — PL nº 2.294/2024 — propõe que, após a graduação, o médico só poderá se registrar no Conselho Regional de Medicina (CRM) caso seja aprovado nesse exame nacional. Assim, a mera conclusão do curso de Medicina deixaria de ser suficiente para a obtenção do direito de exercício profissional. Trata-se de uma medida de impacto estrutural, que altera de forma profunda a lógica de formação e validação de competências no país.
A proposta está em tramitação avançada no Congresso e, se aprovada, transformará o ENPM em um marco regulatório inédito na história da Medicina brasileira.
Muitos países desenvolvidos já adotam exames de licenciamento médico:
País | Exame Nacional? | Detalhes |
---|---|---|
EUA | ✔️ USMLE | Três etapas, exigido para prática médica |
Canadá | ✔️ MCCQE | Prova teórica + prática |
Reino Unido | ✔️ PLAB (para estrangeiros) | Exige domínio do NHS e medicina baseada em evidências |
Alemanha | ✔️ Staatsexamen | Três provas ao longo do curso |
Japão | ✔️ National Medical Examination | 500 questões + entrevista |
O Brasil segue agora o mesmo caminho, buscando padronização e segurança na formação médica.
Por que essa proposta está sendo debatida agora?
A motivação para o ENPM é multifatorial, mas se apoia em um argumento central: a queda da qualidade da formação médica no Brasil. Nas últimas duas décadas, houve uma explosão no número de faculdades de Medicina — de cerca de 90 para mais de 370 —, muitas delas abertas sem critérios rigorosos de avaliação, infraestrutura adequada ou corpo docente qualificado.
O Ministério da Educação, ao adotar políticas expansionistas sem proporcional reforço em regulação e fiscalização, permitiu o surgimento de cursos que operam com hospitais conveniados precários, carga horária prática insuficiente e estágios supervisionados por profissionais sem preparo pedagógico. O resultado dessa massificação desordenada é a formação de um contingente expressivo de médicos que concluem o curso sem a segurança técnica e a maturidade clínica esperadas para o início da prática profissional.
Nesse cenário, o ENPM surge como um instrumento de contenção de danos, uma tentativa de garantir que os médicos recém-formados possuam um padrão mínimo de competências clínicas, éticas e científicas, funcionando como uma barreira de proteção para a população.
Como funcionará o Exame Nacional de Proficiência em Medicina?
A proposta define o ENPM como uma avaliação dividida em duas etapas:
a) Prova Teórica
Essa etapa deverá abranger conhecimentos fundamentais da prática médica, tais como raciocínio diagnóstico, fisiopatologia, farmacologia, ética médica, saúde pública, medicina baseada em evidências e legislação sanitária. A intenção não é apenas testar memória, mas avaliar a capacidade de integração e aplicação do conhecimento médico frente a situações complexas e reais.
A prova teórica deve seguir uma lógica multidisciplinar e integrativa, refletindo o perfil das competências exigidas de um médico generalista ao final da graduação, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Medicina.
b) Prova Prática
Inspirada no modelo OSCE (Objective Structured Clinical Examination), a prova prática será composta por estações simuladas, nas quais o candidato será avaliado em habilidades essenciais como:
- Comunicação com o paciente;
- Realização de exame físico;
- Tomada de decisão clínica;
- Segurança do paciente;
- Respeito à bioética.
Cada estação representará um cenário clínico diferente, envolvendo pacientes simulados (atores treinados) e examinadores observando diretamente a execução do candidato. Trata-se de um método internacionalmente reconhecido por oferecer avaliação padronizada de habilidades clínicas em ambientes controlados.
Quem será obrigado a prestar o ENPM?
Segundo o projeto de lei, o ENPM será obrigatório para todos os médicos formados no Brasil a partir da vigência da nova lei, ou seja, não afetará os estudantes que já iniciaram seus cursos antes de sua promulgação. Também será obrigatório para:
- Médicos estrangeiros com diplomas revalidados por vias alternativas ao Revalida;
- Brasileiros formados no exterior que não tenham feito o Revalida.
Estarão isentos:
- Médicos com registro ativo no CRM antes da sanção da lei;
- Estudantes que já estejam matriculados nos cursos de medicina antes da entrada em vigor da norma.
Esse critério de transição busca respeitar o princípio da segurança jurídica, protegendo expectativas legítimas de quem iniciou sua formação sob regras anteriores.
O que muda para os formados no exterior? O ENPM substituirá o Revalida?
O projeto prevê que a aprovação no ENPM será considerada equivalente à aprovação nas duas etapas do Revalida — o exame nacional hoje obrigatório para revalidação de diplomas médicos estrangeiros.
Essa equiparação unifica os critérios de acesso à profissão, eliminando a duplicidade de exames para médicos formados no exterior que queiram atuar no Brasil. No entanto, médicos que optarem por outras formas de revalidação que não incluam o Revalida precisarão obrigatoriamente realizar o ENPM.
Essa medida fortalece a coerência regulatória do sistema de validação profissional, dando ao ENPM um status normativo superior e consolidando-o como o exame nacional único e obrigatório para todos os médicos.
O Brasil está preparado para aplicar esse exame?
Essa é uma das principais críticas levantadas pelos opositores da proposta. O modelo previsto para o ENPM, especialmente a etapa prática, exige uma estrutura robusta: centenas de centros de aplicação, equipes treinadas, padronização nacional, pacientes simulados e logística sincronizada.
Até hoje, o Brasil enfrenta dificuldades logísticas até mesmo com a aplicação do Revalida, que atende uma quantidade muito menor de candidatos. O desafio de operacionalizar o ENPM em escala nacional é, portanto, gigantesco.
Mais do que logística, o sucesso do ENPM depende da transparência dos critérios de avaliação, da capacitação de avaliadores, da equidade de acesso e da capacidade de o sistema absorver as consequências de reprovações em massa, algo que pode ocorrer nas primeiras edições, especialmente se não houver política de apoio ao reprovado.
Quais são os argumentos favoráveis ao exame?
Os defensores da proposta enfatizam a necessidade de proteger a população brasileira contra práticas médicas inseguras, garantindo que todos os médicos em início de carreira tenham um conjunto mínimo de habilidades clínicas, teóricas e éticas.
Além disso, argumenta-se que o ENPM poderá:
- Induzir a melhoria dos currículos médicos, forçando escolas a se alinharem às competências cobradas;
- Estimular maior rigor nos internatos e nos estágios supervisionados;
- Reduzir a judicialização causada por erros evitáveis cometidos por médicos mal preparados;
- Criar um parâmetro nacional único de proficiência, equiparando brasileiros e estrangeiros de forma justa.
Em suma, a lógica central é de que o ENPM não será um instrumento de exclusão, mas sim de validação e garantia de qualidade, contribuindo para uma medicina mais segura, humana e resolutiva.
Quais são as críticas e riscos da proposta?
Entre os pontos mais sensíveis está o risco de punir o estudante pelo fracasso do sistema educacional. Instituições de ensino que operam com estrutura deficiente não são responsabilizadas diretamente, enquanto o egresso pode ser impedido de exercer a profissão para a qual estudou por seis anos — muitas vezes com grandes sacrifícios financeiros.
Além disso:
- O exame pode aprofundar desigualdades sociais, já que alunos de baixa renda terão menos recursos para cursinhos ou repetições da prova;
- A pressão para “passar na prova” pode fomentar o surgimento de cursinhos focados no ENPM, deslocando o ensino da prática clínica para a preparação artificial;
- A reprovação em massa pode gerar uma legião de formados sem permissão para trabalhar, aumentando a frustração, o adoecimento psíquico e a evasão da profissão.
Há ainda o risco político: o projeto pode ser aprovado sem que o país tenha tempo hábil para se estruturar logisticamente, comprometendo sua credibilidade já nas primeiras edições.
Como esse exame se compara ao que é feito em outros países?
Vários países desenvolvidos já exigem exames nacionais obrigatórios para ingresso na prática médica:
- Estados Unidos: USMLE (3 etapas, desde o meio da faculdade até após a residência);
- Canadá: MCCQE (teórica e prática);
- Reino Unido: PLAB (para estrangeiros, com exigência de proficiência no sistema de saúde britânico);
- Alemanha: Staatsexamen (três provas distribuídas ao longo do curso);
- Japão: National Medical Examination (500 questões + entrevista).
A adoção do ENPM coloca o Brasil em sintonia com padrões internacionais e demonstra um esforço de institucionalização da qualidade, algo que hoje depende exclusivamente da certificação das faculdades.
Tramitação do Processo
O Projeto de Lei 4667/2020 encontra-se na Câmara dos Deputados, confira o andamento:
Data | Andamento |
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21/09/2020 | Mesa Diretora ( MESA )Apresentação do Projeto de Lei n. 4667/2020, pelo Deputado Eduardo Costa (PTB/PA), que “Altera o art. 17 da Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, para dispor sobre a obrigatoriedade de aprovação em Exame Nacional de Suficiência em Medicina, como um dos requisitos necessários para o exercício profissional da Medicina em território nacional”. Inteiro teor |
24/03/2021 | Mesa Diretora ( MESA )Apense-se à(ao) PL-650/2007. Proposição Sujeita à Apreciação Conclusiva pelas Comissões – Art. 24 II. Regime de Tramitação: Ordinária (Art. 151, III, RICD) Inteiro teor |
24/03/2021 | Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público ( CTASP )Recebimento pela CTASP. |
24/03/2021 | COORDENAÇÃO DE COMISSÕES PERMANENTES ( CCP )Encaminhada à publicação. Publicação Inicial em avulso e no DCD de 25/03/21 PÅG 382. Inteiro teor |
16/04/2024 | Comissão de Trabalho ( CTRAB )Designado Relator, Dep. Abilio Brunini (PL-MT), para o PL 650/2007, ao qual esta proposição está apensada. |
03/04/2025 | Foi aprovado o parecer favorável pelo Senador Hiran (PP-RR) na Comissão de Assuntos Sociais. |
Uma proposta necessária, mas que exige responsabilidade coletiva
A instituição do Exame Nacional de Proficiência em Medicina representa um passo corajoso e necessário em direção à qualificação do exercício profissional da medicina no Brasil. Contudo, não se deve confundir barreira técnica com castigo social. O sucesso do ENPM dependerá não apenas da sua aprovação legal, mas da sua implementação ética, equitativa e tecnicamente robusta.
Mais do que reprovar maus alunos, o ENPM deve servir para explicitar o fracasso de instituições ruins e forçar o país a repensar sua política de formação médica. Seu objetivo maior não é excluir, mas proteger vidas.